sexta-feira, 20 de abril de 2007

Golpe Final (03/04/2007)

Camilla lembrava-lhe um blues à moda antiga, era a mulher certa pra acompanhá-lo a qualquer lugar, era mulher que devorava Nelson Rodrigues e lhe suscitava analogias a alguma personagem de um filme de Bertolucci. Envolta pela fumaça de seu cigarro exauria uma sedução e um hipnotismo tal qual de uma esfinge, que no momento propício, o arrebataria enfim para o golpe final.
De certo atrasava-se pra lhe provocar os sentidos, e Pedro se inundava de pensamentos que deixavam em sua pele espasmos , em seus lábios o gosto precoce do que seria um beijo e em sua lembrança o doce perfume de sua presença. Sim, ela era sua pintura da alma, era a modelo que faltava-lhe para que ele enfim tivesse a obra que lhe abriria as portas para a verdadeira arte.
Filha de um escritor parisiense decadente e de uma cantora que perdeu a doçura na voz, ela era estreita nas suas afirmações sobre a família, e muito mais, sempre se absteve de comentários sobre a instituição familiar, ela não era nem ríspida, nem suave nesse sentido, era simplesmente neutra. Há dois anos era noiva de um engenheiro, homem este que ela conhecia desde a infância e por quem alimentava um amor fraternal e um respeito infinito, falava em filhos e uma vida conjugal sem pompas ou romantismo, apenas citava.
De tempos em tempos ambos discutiam algo sobre filosofia, ela cética demais, ele sonhador demais. E entre calorosas discussões no parque ambos calavam-se, ficavam apenas atentos ao entardecer no horizonte. Absortos cada um com seus pensamentos se indignavam com a possibilidade de que duas criaturas tão diferentes, tão separadas, pudessem proporcionar um ao outro aquele sentimento de fim de tarde. Aquele, de olhar o pôr-do-sol e por algum motivo oculto apenas sentir que a vida parece ter um sentido.
Pedro, inebriado por entre olhares, sorrisos e palavras especialmente moldadas por um sotaque único, se perdeu. Camilla era seu sol matinal, sua lua, sua bebida, sua comida, mas ele sabia, na triste e dura realidade, Camilla era só a amiga da cadeira ao lado na tão sonhada universidade de artes, era só o fruto de noites melancolicamente belas.
De todas as formas ele a envolvia, sugava cada segundo em sua presença, cada palavra de quando conversavam, cada traço e ponto multicolor presente no mel de seus olhos. Aos poucos ia construindo em sua mente a pintura de Camilla, sua obra final, sua obra divina. Ela, secretamente apaixonou-se por ele, em sua companhia não citava nenhuma palavra sobre o que ocorria no lado de dentro da sua alma, era apenas impressão e imagem, queria ser assim e foi assim grande parte do tempo na sua vida ao lado de Pedro.
Enfim em uma tarde ociosa de domingo, logo após a formatura de ambos, Camilla aceitou ser modelo para uma breve pintura, no instante da última pincelada ela deixou rolar uma pequena lágrima, o toque final, o segundo final, o golpe final na alma do artista que via-se extasiado perante a criação que tinha diante de si, aquele foi o breve momento que representou o sempre, foi o inesquecível segundo em que ela foi alma imortalizada.
Calaram-se, olharam-se e naqueles instantes não ressoaram uma palavra sequer, assim que viu a imagem do seu lado de dentro na pintura Camilla pegou sua bolsa e retirou-se muda. Depois daquele dia nunca mais se viram, ela se casou uma semana depois, ele mudou-se para Paris logo em seguida.
Camilla agora é imagem e impressão de uma declaração muda, é o sussurrar de aflições em um olhar vazio, é o tremer de lábios que seguram uma tardia revelação, é o sentimento do artista e da pintura imortalizado, finalizado e lembrado a cada manhã no abrir das pálpebras diante do raiar de um novo dia.

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