quarta-feira, 16 de maio de 2007

Cheiro de tinta fresca

Algo surge em minha casa, entra pelas minhas narinas e me deixa tonta. Sento, e já não posso pensar como foi que deixei-me ficar naquele estado. Osvaldo deve demorar-se, é longa sua estrada, sua viagem e há tempos deixei de me importar com isso e percebi que não somos pedra no mesmo caminho. Adquiri hábitos estranhos nesses anos, coleciono fotos dos lugares que não visitei, dos sorrisos que não vi, e das borboletas no meu jardim que nunca observei. Limito-me ao mundo do não ser, porque nunca me contentarei com o meu, o meu mundo é cinza e opaco pelos olhos da grande Avenida Paulista.
Sete e trinta o relógio toca, levanto-me custosamente, aprecio meus lençóis de cetim, minhas xícaras e o andar geometricamente correto de minha vida. São oito da manhã e pressinto que irei me atrasar. Ora bolas! Ir pra lugar algum é trabalho enfadonho, e hoje faço e digo o que quero pelo meu bem-especificado-mal-estar. Hoje faço plantação no ócio de minha casa e rego doenças no ouvido dos colegas de trabalho. Afinal, não me importaria de ser dispensada, nunca precisei financeiramente daquele emprego, aquilo é só uma distração do tempo quando ele, o próprio tempo, não esta.
Osvaldo chega. Olha-me com desconfiança, observa meu andar e meu olhar que levam-me pra longe. Abraça-me tematicamente e diz:
-Voltei antes, sinto falta da agitação.
Olho-o com ternura, e ele me pergunta o porquê. Calo-me. Osvaldo me persegue, pega-me pelo braço, e me pergunta porque o olhar de desdém.
-Não é desdém é ternura.
-Por que ternura?
-Estou me despedindo do seu rosto.
-Como?
-Despeço-me de seu rosto com antecedência, isso torna sua distância indiferente.
Osvaldo não é burro, mas ele não me entende. Nunca pedi que me compreendesse, mas ele se esforça e nesses dias acho uma pena que não ensinem na escola que mulher é bicho incompreensível.
Tomou seu banho e novamente olhava-me com indagações:
-O que tem? Não foi trabalhar por quê?
Olho-o novamente com ternura e digo:
-Hoje o tempo me deu uma trégua.
-Você esta debochando, mulher? Está estranha.
-Quero voltar pra casa Osvaldo... Sinto o cheiro de leite fresco, das romãs no quintal e quase posso ouvir as meninas gritando na janela.
-Você de novo com essa história...
Baixo os olhos e penso que de novo tento me libertar do sepulcro de uma mulher amordaçada e cansada de ser ela. Em vão Catherine .... Em vão...
-Irei dormir, o cheiro de tinta me deixa tonta.
-De onde vem?
-Não faço idéia...
-Deve ser do vizinho.
(...)
Osvaldo chega no quarto algumas três horas depois, sua mulher dorme tranquilamente e profundamente. Ele estranha aquela serenidade. Observa ao seu redor e vê um frasco de comprimidos vazio. Osvaldo olha-a atentamente e pensa: Ela nunca foi desordeira... Deve ser o cheiro de tinta fresca.


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