quarta-feira, 25 de abril de 2007

Um rio

Navegar é preciso, indiferente da turbulência, ou do céu que semeia tempestades, colhe ventos pra te derrubar e em sua plenitude te mostra a face do medo. E com o medo vem o sentimento de inutilidade perante a vida, que fatalmente contamina cada gota de coragem do seu sangue. E você organiza seus tesouros, abraça suas expectativas e segura bem firme, e por mais que você não queira acaba levada pelo furacão de sua alma que devora-lhe os cabelos e turva a visão com a grande quantidade de gotas que chega até seus olhos. Nada é pior do que sentir em seu peito que você falhou, se arrepender profundamente das suas perdas, se amargurar sinceramente com sua posição e não conseguir se redimir.
Quando eu era pequena, existia um rio calmo de águas límpidas perto de minha casa, várias vezes fui pescar no mesmo, nele aprendi a nadar , a jogar pedrinhas que deslizavam pela água como se flutuassem como anjos e também aprendi a me afogar. Todas as tardes, eu o visitava, jogava as pedrinhas que havia colhido pelo caminho e assim acreditava que a presença dos anjos estariam dessa forma em mim, regava os sonhos que tantas vezes quase perdi nos caminhos tortuosos que me levavam àquele lugar e ao chegar o momento de ir-me observava atenta o pôr-do-sol dar-me cores variadas, cores crepusculares tão lindas que nunca em toda em minha vida vi iguais.
Sempre fui uma criança só, que cultivava dentro de sua imaginação amigos e um cão que nunca teve devido a uma forte alergia. Era um pássaro na gaiola que não tinha aprendido a cantar. Era metade do que sentia, outra metade do que se arrependia, e a fronteira entre o bizarro e o belo. Buscava a pétala negra de minha alma, queria aprisioná-la assim como fizeram comigo devido aos meus pés presos no suspiro vazio de minha vida, mas nunca a encontrava, e ela vivia a dançar com o vento apenas dentro da minha imaginação.
Numa noite de inverno, após um bom tempo sem passear no rio devido ao forte frio que se alastrava em minha cidade, sonhei estar lá. Navegava pelas suas águas em um pequeno barco que possuía apenas uma lanterna acesa. Via os vaga-lumes se perderem na escuridão do céu e se tornarem estrelas, e também via um mago comer os pedaços da lua e se esconder com a percepção de meus olhos atentos. No término do caminho encontrei uma caverna com minha primeira lágrima guardada em um livro de ouro, minha boneca que havia perdido ali há 3 meses atrás, e uma carta que nunca havia enviado, uma carta que fiz aos 9 anos e até então tinha comigo.
“Deus, eu sei que sou uma criança, e não gosto de pensar em crescer. Pensei em escrever para o papai-noel mais meu primo disse que ele não existe, pensei em conversar com um vaga-lume e pedir pra ele te dar o recado mas minha professora disse que as estrelas são bolas de fogo, fiquei com medo. Então escrevo essa carta pra você, a deixei debaixo do travesseiro pois sei que o senhor me visita nos sonhos, e que um dia a lerá. Eu preciso de paz, não gosto dos meus colegas de classe, nem do meu dever, queria ser uma astronauta sabe, pra viver bem longe daqui, e daqueles garotinhos que pedem dinheiro, eles me dão medo e pena. Deus me ajude, só você pode me ajudar.”
Após a leitura via-me fora da caverna, estava velha a observar um menino que a encontrava , o pequeno leu-a , suspirou, e pensou não ser tão só quanto imaginava. E no lugar onde antes era o fundo do rio, em meio a poeira, bem escondida, encontrou a pétala negra de minha alma que tantas vezes busquei e estava onde menos procurava.
Acordei com uma sensação estranha no peito, eu precisa me encontrar novamente com aquele lugar. Ao chegar, já era tarde demais, o rio havia secado, e as árvores, que tantas vezes me foram calmos leitos, tinham morrido. Deixei a carta lá, pousada onde um dia os resquícios de minha vida foram felizes, sem sequer abri-la ou ousar lê-la novamente. Fui embora sem olhar pra trás e dessa vez perdi meus sonhos nas pedras encontradas no meu caminho.
Cheguei em casa, e ao sentar na velha cadeira de balanço de minha vó descobri a realidade que me perseguia até ali. A minha casa, a única e verdadeira que possuía, não era de madeira ou tijolos. O meu abrigo contra o frio, o vento e a tempestade lá fora e aqui dentro era a minha inocência que fora deixada em cada segundo que voava por entre meus dedos e conseqüentemente exalava o odor fúnebre da realidade.

terça-feira, 24 de abril de 2007

CA-RAM-BA (13/04/2007)

"Primeiramente, não pense que esse caramba é aquele típico de dançarino de salsa de camisa com estampa brega, eu definitivamente tenho calafrios ao imaginar que algum ser humano pode ter isso gravado em sua mente, e pior ,ouse vez ou outra, utiliza-lo pra ilustrar algum acontecimento que é similar quando apela para o conjunto complexo de suas lembranças.
Eu, preso na minha vidinha de criatura rasa, não aceitaria de forma alguma essa comparação, e como esse texto é meu, eu faço dele e do que você pensa dele o que eu bem entender. Pois bem, fique tranqüilo, caro leitor, não vou usar expressões como labutar ou companheiros, isso é coisa do Lula, e deixemos ele imerso na sua vida de operário com cartão de crédito tão ilimitado quanto suas gafes e tropeços gramaticais. Não que eu seja gramaticalmente correto, mas vejamos, eu tenho a base de um escritor fracassado, não sou marionete de um bando de empresários e nem piada no exterior, só um livro que publiquei no início de minha carreira foi, mas eu já me recuperei disso, pelo menos é o que eu acho.
Bom, como eu odeio política, deixemos o Lula no parquinho, brincando de ser presidente e grande representante da classe trabalhadora, com seu terno, sua bela casa, sua pensão pelos “danos causados pela ditadura”, e imaginemos que a ascensão rápida e “sem-labuta” (juro que foi a última vez!) de seu filho foi por mero merecimento. Sim, eu não me contentei em falar dele, minha mente perversa o imaginou vestido como o tal dançarino brega, e por motivos desconhecidos achei que ele seria reconhecido como sexy pelo movimento GLS nessa posição. Tenho que divagar menos, eu sei, se continuar assim vou ficar esquizofrênico e não deve ter nada pior do que o Lula vestido de dançarino sentado na minha sala de estar.
Voltemos a mim, o centro da atenção nessas meras linhas, o centro de expressões vazias e “nem-lembro-mesmo-do-que-ia-falar”. Eu sou o típico carioca solteirão que já “passou da idade”, de óculos fundo de garrafa e gordo. Fico na fila do mercado horas aguardando as velhinhas contarem suas benditas moedas sem soltar um palavrão sequer, dou lugar as mesmas bem-aventuradas no ônibus, e nem ouso me irritar porque a geladeira quebrou e estou comendo pão com mortadela há duas semanas. Resumindo, sou um cidadão politicamente correto, que cumpre de forma magistral suas obrigações, lê seus e-mails e as publicações de Cony esporadicamente e no resto do tempo se afunda na função que “mais-adora-nessa-vida”, ser um digníssimo jornalista de meia-idade que não publica nada a mais ou menos uns quatro anos.
Um dia, um belo dia ensolarado, descobri que aumentariam em alguns míseros reais minha aposentadoria. Você, caro leitor, deve entender sobre a sensação de ter um orçamento diferenciado de dez reais, qualquer mão-de-vaca entenderia, e todos nós, homens de bem, somos mão-de-vaca até que nosso saldo bancário nos prove o contrário ou façamos a desgraça de desposar alguma bela fêmea. Eu, graças a Deus, não cometi nenhum dos erros acima.
Diante dessa esplendida notícia, cometi a primeira desgraça em minha vida, desgraça essa que colocarei na lista acima nos meus próximos manuscritos. Na ânsia de rapidez, que diga-se de passagem nenhum velho pode ter, assinei um provedor de banda larga, mais conhecido como velox, passei todos os meus dados para uma operadora de telemarketing pelo telefone. Cristo eu pequei! E eu nem vendi minha alma para o demônio, mas pra coisa pior, à TELEMAR. As ligações versus aborrecimentos começaram no dia seguinte. Primeiro porque essas pobres almas robotizadas encafifaram na sua também pobre mente que me venderiam um “provedor não só de acesso a internet, mas de conteúdo, que me daria acesso a mais de 500 páginas de revistas, notícias e variados, por uma quantia irrisória de R$14,90”.
Agora me diga, como é que eu iria conseguir explicar para aquela pobre criatura, que esse valor fugia ao meu orçamento e é claro da fortuna que tinha ganho como aumento. Bom, aquela maravilhosa representante do sexo feminino repetiu tantas vezes essa informação na minha adorada orelha que se déssemos um saco de arroz para cada repetição dela acabaríamos com a fome na Etiópia, e quem sabe, faríamos do Fome Zero uma realidade e não um castelo de areia do parquinho.
E as ligações de vários outros “provedores-de-conteúdos” se estenderam, assim como o prazo de entrega do modem, porque obviamente a filha de uma rapariga (com todo respeito ao restante das senhoras, mães de outras operadoras de telemarketing, tão ofendidas e tão injustiçadas) que me atendeu não deixou registrado a observação que cansei de repetir: “Alarme, Alarme, Interfone quebrado”. Isso!!! Falei como uma sirene, pra ver se assim a nossa ilustre amiga conseguiria guardar a informação. Óbvio que foi em vão.
Lógico, depois de várias semanas nesse vai-não-vai dei um basta. Liguei para o provedor e cancelei minha conta em tom desaforado e arrogante, liguei para o velox, e quase mandei uma foto de minhas belas e esculturais nádegas para o fale conosco da empresa. Em meio a esse turbilhão de sentimentos diabólicos que me tomaram consegui me conter, e num último ato de desatino, tal qual quando quase me casei com uma paraíba de São Gonçalo, soltei um estratosférico CA-RAM-BA na janela. Meus vizinhos até hoje me olham atravessado, mas assim pude continuar a ser o cidadão exemplar que sempre fui. Afinal, evitei um desatino maior, um desatino que povoa meus sonhos desde então, um desatino tal qual como comprar uma metralhadora e fazer uma verdadeira chacina no prédio da Contax, Atento, entre outros da mesma linha. Mas me contento em apenas sonhar, eu estou velho demais pra ser preso por uma boa causa, e minha adorável fortuna que obtive com o aumento na aposentadoria, não daria, nem de longe, pra comprar a metralhadora e a munição dos meus sonhos. "

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Golpe Final (03/04/2007)

Camilla lembrava-lhe um blues à moda antiga, era a mulher certa pra acompanhá-lo a qualquer lugar, era mulher que devorava Nelson Rodrigues e lhe suscitava analogias a alguma personagem de um filme de Bertolucci. Envolta pela fumaça de seu cigarro exauria uma sedução e um hipnotismo tal qual de uma esfinge, que no momento propício, o arrebataria enfim para o golpe final.
De certo atrasava-se pra lhe provocar os sentidos, e Pedro se inundava de pensamentos que deixavam em sua pele espasmos , em seus lábios o gosto precoce do que seria um beijo e em sua lembrança o doce perfume de sua presença. Sim, ela era sua pintura da alma, era a modelo que faltava-lhe para que ele enfim tivesse a obra que lhe abriria as portas para a verdadeira arte.
Filha de um escritor parisiense decadente e de uma cantora que perdeu a doçura na voz, ela era estreita nas suas afirmações sobre a família, e muito mais, sempre se absteve de comentários sobre a instituição familiar, ela não era nem ríspida, nem suave nesse sentido, era simplesmente neutra. Há dois anos era noiva de um engenheiro, homem este que ela conhecia desde a infância e por quem alimentava um amor fraternal e um respeito infinito, falava em filhos e uma vida conjugal sem pompas ou romantismo, apenas citava.
De tempos em tempos ambos discutiam algo sobre filosofia, ela cética demais, ele sonhador demais. E entre calorosas discussões no parque ambos calavam-se, ficavam apenas atentos ao entardecer no horizonte. Absortos cada um com seus pensamentos se indignavam com a possibilidade de que duas criaturas tão diferentes, tão separadas, pudessem proporcionar um ao outro aquele sentimento de fim de tarde. Aquele, de olhar o pôr-do-sol e por algum motivo oculto apenas sentir que a vida parece ter um sentido.
Pedro, inebriado por entre olhares, sorrisos e palavras especialmente moldadas por um sotaque único, se perdeu. Camilla era seu sol matinal, sua lua, sua bebida, sua comida, mas ele sabia, na triste e dura realidade, Camilla era só a amiga da cadeira ao lado na tão sonhada universidade de artes, era só o fruto de noites melancolicamente belas.
De todas as formas ele a envolvia, sugava cada segundo em sua presença, cada palavra de quando conversavam, cada traço e ponto multicolor presente no mel de seus olhos. Aos poucos ia construindo em sua mente a pintura de Camilla, sua obra final, sua obra divina. Ela, secretamente apaixonou-se por ele, em sua companhia não citava nenhuma palavra sobre o que ocorria no lado de dentro da sua alma, era apenas impressão e imagem, queria ser assim e foi assim grande parte do tempo na sua vida ao lado de Pedro.
Enfim em uma tarde ociosa de domingo, logo após a formatura de ambos, Camilla aceitou ser modelo para uma breve pintura, no instante da última pincelada ela deixou rolar uma pequena lágrima, o toque final, o segundo final, o golpe final na alma do artista que via-se extasiado perante a criação que tinha diante de si, aquele foi o breve momento que representou o sempre, foi o inesquecível segundo em que ela foi alma imortalizada.
Calaram-se, olharam-se e naqueles instantes não ressoaram uma palavra sequer, assim que viu a imagem do seu lado de dentro na pintura Camilla pegou sua bolsa e retirou-se muda. Depois daquele dia nunca mais se viram, ela se casou uma semana depois, ele mudou-se para Paris logo em seguida.
Camilla agora é imagem e impressão de uma declaração muda, é o sussurrar de aflições em um olhar vazio, é o tremer de lábios que seguram uma tardia revelação, é o sentimento do artista e da pintura imortalizado, finalizado e lembrado a cada manhã no abrir das pálpebras diante do raiar de um novo dia.

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Visitas Noturnas (08/04/2007)

Todos os fantasmas de sua vida devoraram as poucas estrelas que restaram acesas aquela noite, e como que em coro seus pedaços foram falecendo e caindo diante da pequena mulher que observava tudo pela janela com olhar resignado. O som do piano atormentavam-lhe os pensamentos, e os cacos perdidos em algum lugar do coração transbordavam e escorriam pela sua face, em instantes pôde saber que nem tudo era exatamente como ela desejava, assim como já imaginava, assim como seria no seu mundo povoado por falsos heróis.
Caminhos do seu passado foram rearranjados em sua lembrança, em sua música e foram estilhaçados pela sua mania de procurar o óbvio nas coisas complexas e por grande parte da sua teimosia em acreditar. Mas em noites escuras, noites solitárias em que tudo parece distante, o óbvio fugia por entre seus dedos, o passado virava um emaranhado de idéias perdidas, de sentimentos descabidos e de fugas que sempre levaram à um ponto comum. O ponto que tocava na sua alma de forma rude, que a arranhava, que a fazia sangrar e a deixava inerte apenas sentindo que talvez o fim estivesse mais próximo do que ela pensava. O ponto que mostrava-lhe o lado verdadeiro de tudo que omitiram.
Sim, sua inocência havia sido perdida na última lágrima que ela derramara, sua esperança tinha ficado no último copo vazio, sua paz fora esquecida em algum momento de uma lembrança distante e cuidadosamente guardada em sua partitura em forma de notas felizes que com o passar do tempo se tornaram sinistras demais pra serem tocadas.
Tentar aceitar a realidade crua nunca foi seu ponto forte, seu alicerce de idéias ou até mesmo uma base sólida para que ela construísse suas expectativas, suas explicações e suas convicções sobre tudo que não podia entender. E eis que o fim de todas as coisas que eram seu porto seguro entravam pela janela, pediam abrigo em seu coração e pousavam diante dela escancarando a expressão de quem tem pressa, de quem não quer um talvez, de uma inquisição muda vista no brilhante de cada ponto de seus olhos.
Agora, sozinha com seus pensamentos, pôs-se a observar as gotas da chuva que passeavam na sua face, sufocou o grito, o protesto e o resto do que seria aquela noite no travesseiro e dentro de si. Amordaçou seus sentimentos, entregou-se aos seus lençóis e ao quarto que escancaravam formas que eram tão frias quanto as cores de seus olhos.
Enfim, após muitos anos aflitos, ela conseguiu descansar nos braços de anjos que povoam o pensamento das crianças, sentiu em cada gota de seu sangue o frio pela dúvida, pousou as pálpebras de forma que o ruído de suas lágrimas fossem música, e então, diante da primeira e última canção de ninar que ouvira em toda sua vida, pôde finalmente dormir o sono dos que acham que há algum sentido em apenas existir, dos que perdem um dom divino devido a criação de uma geleira no coração, dos que passam pela vida solitários, calados... Assim, como se fossem apenas um retrato na parede.

O Brinco (30/03/2007)

Há tempos ela estava parada na janela, observava o brilhar das estrelas ressoarem música de ninar em seus ouvidos, e passava horas a imaginar porque os gritos no prédio ao lado pareciam gritos de sua alma, a noite estava escura, escura de céu alaranjado enevoado, e entre um suspiro e outro ela confundia o chegar de um novo nevoeiro com a fumaça de seu cigarro. Por entre os tilintares da taça de vinho que segurara e que lhe escapou das mãos, lamentava a sua inexistência e singularidade em meio a tudo que amava. Perdeu horas lembrando os lugares de sua vida, as emoções em meio ao nada, e a estrada que tantas vezes mirou com descaso, e que ficava pra trás cada vez que ela tentava buscar o Eu dentro do seu próprio eu.
Sentou-se na cama, e atentamente buscou em meio sua caixa de bijuterias a outra peça do Brinco que perdera, vasculhava os pensamentos procurando uma pista, desintegrava cada minuto daquela noite em milésimos de segundos e nada encontrava no vazio de sua memória. Inerte, ela observava prolongadamente a peça que lhe restara e que tinha em mãos, mentalizava cada sorriso dado em sua companhia, cada sonho construído em que o adorno principal era a inocência da juventude, cada gota de tudo que foi embora e que nada significava assim como a outra metade de tudo que perdeu. Agora, diante do espelho ela desviava o olhar de sua face e buscava um outro foco, tinha medo do nublado cinza de seus olhos lembrar-lhe todos os fantasmas que ficavam escondidos atrás da porta e nos vãos obscuros de sua lembrança.
Sentia em seu peito apenas uma sensação de vazio, uma certa mistura que se manifestava como um ressentimento devido ao abandono instantâneo da parte de algo, que mesmo simbolicamente, um dia foi seu. Nos lábios ficava o gosto amargo do ciúmes de quem possuiria em algum canto especial aquilo que para ela, no momento que foi necessário nada significou.
Suspirou bem fundo, do suspiro de quem sabe que tudo terminou, que não tem como voltar atrás, e que as soluções se esgotaram assim como o tempo que corria na sua frente aquele instante. Retocou a maquiagem, recriou a máscara que a protegia dos desencontros do mundo e jogou a peça do Brinco que ainda tinha, dentro de uma caixa vazia em algum canto. Juntou algumas notas que encontrara em meio as suas coisas, e foi à loja de bijuteria mais próxima procurar um brinco novo. Do lado de fora, bem no cantinho, misturado à teias de aranhas, sapatos e restos de papéis que se perderam com o tempo, estava o Brinco. Inerte, brilhante, tão solitário quanto ela, quem sabe buscando, tentando e lá no fundo, em meio aos seus desejos íntimos, a esperando.